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[47ª Mostra de São Paulo] Conversas Pela Noite (2023)

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 19 de outubro e 1 de novembro.


Assistir a Conversas Pela Noite (Talks Over Night, 2023), primeiro longa da acadêmica e crítica de cinema chinesa Su Qiqi, é um exercício bastante interessante. A protagonista é Qiqi, interpretada pela própria diretora, uma… acadêmica e crítica (dessa vez literária), cujo filho já saiu de casa para estudar e que agora, na convivência com o marido, o poeta Ma Yuebo (interpretado por, bem, seu marido, o poeta Ma Yuebo) coloca em conversas (como o filme indica) um série de questões sobre sua vida. A própria diretora já informou em entrevistas que trata-se de uma obra bastante autobiográfica. Até os amigos que aparecem eventualmente, interpretados por seus próprios amigos, são versões roteirizadas deles mesmos.

Mas o que me deixou interessada foi justamente o conteúdo dessas conversas. Alguns dos temas me fizeram refletir sobre o teor da discussões depois de chegar em casa. O vislumbre de uma classe média alta chinesa, com sua casa gigante e seu carro moderno, contextualizam os assuntos. Alguns deles podem parecer pedantemente burgueses e muito marcados por questões de classe: das longas discussões estéticas de pessoas acostumadas a viver encasteladas em um mundo de conversas sobre o sexo dos anjos à forma como pessoas da classe trabalhadoras são comentadas ou julgadas. Os livros empilhados pelos cantos da casa e mesmo ao redor da cama do casal, em uma bagunça cuidadosamente planejada, entregam seus hábitos mergulhados na intelectualidade. A cama, aliás, aparece como o signo da incapacidade de Qiqi se render ao sono, com uma insistente insônia que reflete seus anseios pessoais.

Mas a banalidade dos diálogos iniciais puxa outros que talvez ecoem por um público maior. A insatisfação e a sensação de falta de reconhecimento no trabalho; a desigualdade de gênero na carreira; as cobranças em relação à criação dos filhos; o sistema de ensino que serve para nos conformar a normas; a estranha sensação da passagem do tempo e do envelhecimento; as diferenças geracionais; o amor e a companhia em um relacionamento de longa data, a tristeza e a solidão; essas últimas, ainda por cima, grandemente impactadas pelo período pandêmico que vivemos recentemente. As conversas em torno da mesa, que remetem a Hong Sang-soo e, entre wanton e arroz glutinoso e taças de vinho, revelam as diferentes referências do casal, assim como as lombadas dos livros e a almofada dos Beatles casualmente retratados.

As escolhas estéticas do filme são hesitantes. A fotografia em preto e branco não informa exatamente a que veio. A música, que soa experimental, às vezes é presente demais. Os closes e os movimentos lentos de câmera, por sua vez, ajudam a construir um senso de familiaridade. Em certo momento, discutindo a obra de um artista, os personagens mencionam que ele mistura cinema, teatro e literatura. O filme se encerra com a inserção de trechos de um ensaio de uma peça adaptada de O Processo, de Kafka, que parece não dialogar muito bem como o restante da obra, mas ao mesmo tempo demonstra, por um lado a intencionalidade da autora de também brincar com esses elementos, por outro a própria relação dos personagens (e de suas contrapartes na vida real) com esse universo.

Mas para além de um exercício intelectual, o filme ganha quando os personagens, refletindo seus atores-autores, compartilham de angústias comuns. Existe uma placidez calma e revigorante em ouvir conversas tão cotidianas no cinema. E, ainda que nem sempre haja segurança na realização da obra, são essas expressões de humanidade que suavizam o contato do público com as pessoas que a realizaram.

Imagem: Divulgação
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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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