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[49ª Mostra de São Paulo] O Mundo do Amor

Esse texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.


O Mundo do Amor pode ser separado em dois, a partir de um ponto de virada que acontece bem na metade do filme. Ao apresentar seu longa, Yoon Ga-eun, diretora e roteirista, vem com um tom leve. A fotografia é clara, ressaltando uma iluminação branca mais estourada ao redor dos personagens bem jovens, na escola. Jooin (Seo Su-bin) é sempre engraçada, ri com suas colegas e mesmo com um tema mais pesado rondando a sala de aula e a comunidade ao redor, a obra preza por uma leveza dessa interação juvenil, colocando no centro a vida amorosa da protagonista e suas outras relações. Em dado momento, os assuntos passam a ser lidados com maior seriedade e uma melancolia toma conta, mudança essa que acompanha diretamente o comportamento e o retrato de Jooin.

Nessa pequena comunidade na Coreia do Sul, um pedófilo abusador está retornando para casa depois de cumprir sua pena. Os adolescentes se unem com uma petição para impedir a reinserção do homem na sociedade próxima a eles. Jooin é a única a se opor, focando em uma parte do texto que fala sobre o impacto dos abusos na vida das vítimas. Até esse momento, pistas são dadas para quem assiste, mas o longa sempre recusa uma seriedade maior. A adolescente desvia o assunto quando é perguntada como é um exame ginecológico em uma virgem e bate de frente com o colega que comanda o abaixo-assinado, mas imediatamente desfaz o que diz com uma piada. Há uma máscara vestida pelo próprio filme, fingindo para a pessoa espectadora que está tudo bem e que o que poderia ser algo grave, é apenas uma piada. 

Isso muda radicalmente quando O Mundo do Amor toma um caminho mais pesado em uma cena extremamente marcante. O carro que adentra o lava rápido é filmado de dentro, em baixa iluminação, com as personagens vistas de costas em um plano único e estático. Quanto mais o veículo avança, maior o som do equipamento de lavagem e, ao mesmo tempo, mais profundo é o desabafo de Jooin. A câmera não se move, mas elas avançam literalmente e metaforicamente, adentrando uma dor que a protagonista disfarçava com seu senso de humor. Nada no restante da obra será tão potente quanto a construção dessa cena, mas o que vem a seguir acompanha essa virada de tom.

A partir desse momento, não apenas quem assiste ao filme, mas todos os colegas de Jooin, ficam sabendo a verdade sobre seu passado. O Mundo do Amor propõe uma reflexão novelesca sobre o abuso, de vítimas que não tem rosto nem maneira de ser, podem ser qualquer pessoa com um dor escondida, bem ao lado de qualquer um, e de violentadores que estão mais perto ainda do que se imagina. Ao colocar a história em uma pequena comunidade, apresentando diferentes núcleos dela, Yoon Ga-eun transforma pequenos machucados em sinais de alerta, familiares em possíveis suspeitos e colegas de sala em pessoas que podem estar sofrendo em silêncio.

O desenvolvimento de tudo isso ainda se comunica com uma ingenuidade quase caricata, nada se compara ao peso e sensibilidade que existe no momento em que Jooin remove sua máscara. A cena, inclusive, é uma pequena fresta aberta que se fecha rapidamente. A adolescente, ainda que permita que todos conheçam seu trauma, parece seguir com uma performance, com dificuldade para lidar consigo mesma e com o que sabem dela. Alguns a enxergam como frágil, outros duvidam dela e uma pessoa específica a desafia com bilhetes.

Sublinhando ainda mais sua ideia de que uma vítima de abuso pode ser qualquer um ao redor, O Mundo do Amor é didático e expositivo com a pessoa espectadora em seu encerramento. A obra se contenta com a abordagem juvenil dos temas, quase como se o espaço da sala de aula dos adolescentes tomasse conta da narrativa geral, e se fecha sendo praticamente um material de ensino sobre empatia e atenção às crianças e adolescentes. Nada marcante como poderia ser, dada a condução de alguns momentos, mas com a sensibilidade nos lugares certos.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha

Crítica de Cinema e formada em Rádio e TV. Apaixonada pela sétima arte desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver.

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