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Viver Até o Fim (The Living End, 1992)

Publicado originalmente em 05/06 na newsletter para assinantes do financiamento coletivo do Feito por Elas. Para contribuir com o projeto, assine aqui.


Na abertura, os créditos avisam que esse é “um filme irresponsável por Gregg Araki”. Então não espere um romance convencional, ou uma história de superação ou uma jornada motivacional. Viver Até o Fim (The Living End, 1992) faz parte do grupo de filmes que levou a crítica de cinema Ruby Rich a definir o que ela veio a chamar de New Queer Cinema, um movimento que fala de vivências LGBTQIA+ usando de uma estética do pastiche e da ironia, ressignificando imagens e histórias. 

Araki constrói sua narrativa num momento central para a história do movimento: o pânico em torno da epidemia de HIV e de AIDS. Não a toa o filme termina com os créditos anunciando “dedicado a craig lee (1954-1991) – um dos coadjuvantes do filme- e às centenas de milhares que morreram e às centenas de milhares que morrerão por causa de uma grande casa branca cheia de idiotas republicanos”. O filme abre com seu protagonista, Luke (Mike Dytri), recebendo de um médico a notícia de que seu exame deu soropositivo para HIV. Ele, que é um crítico de cinema um tanto quanto nerdola, com uma vida controlada, se pergunta o que vai ser daí em diante. 

O acaso joga em sua vida Jon (Craig Gilmore), um homem charmoso de jaqueta de couro que é pura encrenca. Já envolvido, ele descobre que Jon também é uma pessoa vivendo com HIV. Mas (se por um acaso um dia ficou) Jon não está triste nem tem crises existenciais. Jon tem raiva. E é desse lugar de raiva que o filme cresce. Raiva contra a homofobia, contra o sistema policial, raiva contra todas as agressões. Raiva, simplesmente. E a narrativa permite que ela se extravase, para horror, mas também fascínio de Luke, como uma provocação para seus próprios limites.

Os dois partem em fuga para encobrir seu rastro de crimes e é impossível não pensar em uma espécie de Thelma e Louise (1991) em que, até mesmo por questões de mercado (um filme independente realizado com um chiclete e três clipes versus um filme de estúdio com diretor renomado que custou quase 10 vez mais), a sexualidade pode ser colocada de forma explícita, e não como um jogo de adivinhações para a plateia. E parte do pastiche vem justamente do road movie, que se finca no histórico do gênero, bem como das histórias de duplas criminosas. Nas palavras da própria Ruby Rich em seu texto de 1992:

Cinematograficamente, ele reencena o celuloide dos anos 60 e 70: Godard dos primeiros anos, Bonnie e Clyde, Terra de Ninguém, Butch Cassidy e o Sundance Kid, todos os filmes de dupla em fuga que já penetraram a consciência de Araki. Aqui, porém, os caras são HIV positivos, um entediado e o outro cheio de raiva, ambos sem nada a perder. Eles poderiam ser personagens de um filme pornô, o garanhão e o cliente, em um terreno renegociado.
(RICH, Ruby. New Queer Cinema, tradução minha)

Outra parte do pastiche, ou pelo menos da piscadela, digamos assim, vem do próprio fato do filme ser uma clara reverência ao próprio cinema (e muita música também). O personagem crítico não é a toa e facilmente qualquer pessoa cinéfila vai identificar na cenografia, no figurino e em outros elementos uma série de conexões com outras obras que vão informar sobre esse filme, mas também sobre o tipo de cinema que está dialogando com Araki nesse momento. 

É um filme irresponsável. Que bom que seja. Esse é o tipo de cinema que nos faz pensar nos custos da assimilação da arte e como a arte transgressora e afrontosa nem sempre é a mais fácil de lidar (e nem precisa) mas tem tanto a nos entregar. Um filme com raiva. E tem como ser diferente?

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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